quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava ignorante a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim." 

[Ausência - Carlos Drummond de Andrade]
"Se quer saber minha opinião, nunca é tarde demais ou, cedo demais pra ser quem quiser ser. Não há limite de tempo. Comece quando você quiser. Você pode mudar ou ficar como está. Não há regras pra esse tipo de coisa. Podemos encarar a vida de forma positiva ou negativa. Espero que você encare de forma positiva. Espero que veja coisas que surpreendam você. Espero que sinta coisas que nunca sentiu antes. Espero que conheça pessoas com um ponto de vista diferente. Espero que tenha uma vida na qual se orgulhe, e se você descobrir que não tem... espero que tenha forças pra conseguir começar novamente."

(O curioso caso de Benjamim Button.)
"Refugiei-me na doideira porque a razão não me bastava."
Gosto de pessoas doces, gosto de situações claras;
e por tudo isso, ando cada vez mais só...
"Porque tudo é mesmo uma merda, mas depois melhora um pouco, quando de noite a namorada vem."
"Eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais."
(...) pois havia momentos em que não se podia nem pensar nem sentir.
E quando não se consegue nem pensar nem sentir ...

...onde se está?

(Virgínia Woolf)
"Por que eu sou do tamanho do que vejo. E não do tamanho da minha altura"

domingo, 26 de setembro de 2010

"É difícil me iludir, porque não costumo esperar muito de ninguém. Odeio dois beijinhos, aperto de mão, tumulto, calor, gente burra e quem não sabe mentir direito. Não puxo saco de ninguém, detesto que puxem meu saco também. Não faço amizades por conveniência, não sei rir se não estou achando graça, não atendo o telefone se não estou com vontade de conversar."

sábado, 25 de setembro de 2010

Será que é você ou eu que não deixa? - ou nós -.

Me sinto inútil quando percebo que minha capacidade em afundar mágoas e perdoar você não me ocorrem nunca.


“Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça a doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada”
 Caio Fernando Abreu in: Pequenas Epifanias 

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

"Até que a morte nos separe é muito pouco pra mim. Preciso de você por mais de uma vida."
Tudo tem dois lados. Incrível. Isto foi bom de se acontecer, por um dos lados. Eu estava contente e confiante demais. Pés no último andar e cabeça já ganhando asas. Você entende? Compreendo que aconteceu isso. Eu precisava colocar meus pés no chão.  Mas, não deixe virar um pesadelo completo, por favor, lhe peço.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Deixo o espaço livre pra qualquer coisa entrar e sair - mas o espaço é pequeno, entendam. Muitos não conseguem vê-lo -. Meu amor por você rompe barreiras. Mas eu ainda estou aqui. Com as minhas. Você vê? Não tem limite. A chegada é a mesma, o meio é longo, e o fim, esse não chega nunca, meu bem.

Meus olhos estavam embaçados desde ontem, deitei na cama ao lado da janela e fiquei espiando a paisagem suja. Entretanto, meu quieto estado foi perturbado por um som de cigarra repugnante. Latejava em meus ouvidos e minha cabeça girava e meus olhos ardiam com a falsa luz. A quarta montanha queimava por trás das cortinas. Era tudo - ou quase tudo -. Só sei que era escuro e gelado.

Depois de alguns minutos, uma vetra de luz bem pequena surgiu entre a cortina e a janela. Era uma luz vermelha-amarela. Não se podia comparar á alguma luz clara ou branca, que seja. Era uma luz ardente. Tinha seu valor, poderia ser um início de caminho. Mesmo que fosse ardente. Era luz. Começo... Ou fim.

Começava a ventar, a brisa atravessava as cortinas e veio ao meu encontro. Apaguei as lâmpadas. Agora tudo estava escuro, fechado e silencioso, até que aquele estorvo, que chamamos de "luz" voltou. Pensei em porque você não me deixa em paz, e ela dizia que hoje, logo hoje, primeiro dia de primavera, ela precisava estar ali. Pra surgirem coisas novas, talvez. O desabroche de algumas coisas, podia ser. E dizia que tanto fazia se o que vinha de mim era verdadeiro, e que o mundo me enlouquecia de uma forma bruta, tanto fazia! E a morte, podemos assim chamá-la, não iria me aliviar; descanso, não iria me ouvir. Eu gritava alto mas ela tampava os ouvidos. Eu arregaçava as mangas e estava pronta para atacá-la, mas ela fugia, dizendo que eu ainda tenho muito o que fazer. E que NADA iria aliviar esta parte. Disse então, pra eu finalmente arregaçar as mangas pro que foi, e que eu não deixei ainda partir, e que isso doía, ardia por culpa minha. Me ordenou que olhasse pros lados, e percebesse presentes de primavera. Orquídeas, girassóis. Nessa manhã de primavera, surgiram duas flores na Orquídea de minha mãe, capaz de salvar ambições.Por que eu tinha de viver? O que é que você tanto guarda pra mim?

Se eu pudesse, jogava fora os piões nojentos, as avós ambiciosas, jogava fora políticos podres, gente falsa e burra. Antes valia a prostituição. Deixava os anjos e as drogas para infelizes. Mas gente não se joga fora. Não é como lixo - mesmo que alguns me façam desmentir esta fala - mas não se joga. De gente, se abraça e cuida.

Me disseram uma vez, que gente excessiva demais não tem remédio. Falam demais, beijam demais, se jogam demais, aparecem e querem demais; mentem por demasiado. Em outra vez, vi num metade sonho metade sonho real, uma garota de sete pés e sete dedos. Ia crescendo a medida que ela fazia algo "demais". Se multiplicava. Um monstro. A menina, apavorada, gritava e chorava. Pedia pelo pequeno, e queria isolar o demais. De tanto querer isolá-lo, cada vez mais o chamava. Tadinha. Não paravam de crescer dedos, unhas grandes, estrias nos pés.

No outro dia, a quarta montanha queimava de novo, sem nada fazer.

A luz apagava, voltava, apagava e voltava, apagava e voltava e assim por diante. Aquela reprise sem nenhum ideal, aquele inferno, só piorava minha constante insônia, e eu já estava me cansado deste fogo. Percebi que eu já estava acostumada com o acender e apagar das coisas. Me incomodava, obviamente, mas não fazia nada. Poderia dizer que era uma caixa fechada, isolada no meio de todo mundo que por ali passava, uma caixa no meio da estrada, mas a caixa, aquela caixinha ali, pequena, coitada, só se abria pra quem ela mesma quisesse.

Talvez meu pessimismo atinja camadas boas na minha vida. E em diante passaram a ficar ruins. Mas veja só, meu querido, existem camadas em mim que NUNCA mudam. Apesar de minha infelicidade continua comigo mesma, me pego de vez em quando sorrindo como nunca, leve, indiferente á qualquer dor que a senhora solidão possa me afligir. Observe como camadas em mim nunca mudam, tenho provas, sérias provas! Tenho a R., que devolve minha infância. O C., que considero meu cordão umbilical, pois me liga á ele e me conecta com o outro lado, me vive. Me faz amar. O único que tenho mais certeza que nunca quero perder. Me conforta, se é que me entendem. A F. Ah, a F, já me causou muitas dores, machucados que nunca parecem se transformar em leves cicatrizes. A S., tem um espaço em mim, que nada nem ninguém jamais tira. Mesmo se um dia, ela vir á querer.

Entendi finalmente que aquela luz, que se mudava em uma sequência só, se repetia porque EU queria. Porque acostumei. No fim da noite, fiquei pemsando e imaginando e criando uma luz clara, porém nem branca nem amarela, muito menos ardente. Não importava a cor, era o bastante pra acender algo já apagado em mim.

domingo, 19 de setembro de 2010

"Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se chocassem de repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:
– Você não passa de um substantivo feminino — disse, e quase sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.
Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada. Admitia que não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não conseguisse controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo daquela zona que alguns haviam convencionado chamar loucura."

bon vent à toi

- Mas você tinha prometido.
- Prometi e agora DesPrometo. Algum problema quanto á isso? Sabemos que muitas coisas ocorrem assim. Me deixa, e, procura algo de melhor pra você.
Olhava nos olhos dela como um cão sem dono, um cão amargurado que sentia-se sem nome e identidade. Vira-lata. Cadê meu osso?
Procurei fazer acupuntura, natação, academia, voltei a comer. Você me abriu o apetite e limpou meu apartamento de coisas runs e incensos queimados; me ensinou a pular corda e brincar de amarelinha. Me fez rever minha família que eu não via há muito tempo. Me fez voltar ao céu.
E agora, é quem corta minhas asas.
- Pega conselhos. Seus anjos parecem tão afagados.
Nessa hora, levantei da cadeira e minhas asas se soltaram. Aos que viram, pensavam que fosse Gabriel, ou talvez Querubins, Serafins, Tronos ou Ofanins, ou mesmo pura ilusão. Asas implantadas, poderia ser. Mas não era. Me sentia apenas como um homem que se sentiu amado e voou.
Me bateu sincera dor no peito e nos ombros, coluna vertebral, nuca e braços. Você me reviveu e agora quer que eu me livre deste... fardo. Como apenas eu fosse o responsável. Não é assim, querida. Mesmo com o nosso infeliz e acumulado amor, não irá tirar além de minha alegria; não irá me dar a insatisfação de perder a incapacidade de voar. Porque sim. Não podemos ficar á ponto da morte quando uma falsa possibilidade de amor vai embora. Por mais que doe, deixe essa dor quieta. Ás vezes ela vai embora, ás vezes, não. Uma hora, outra aparece. Outras vezes, não.
Talvez, pensei em encontrar em outra esquina, uma possibilidade ou salvação de vida. Mas não queria pensar no depois. Só na leveza de existir e o peso de perder alguém de forma cruel.

Pulei contra o vidro, e voei. Sem rumo.

"E o seu abraço será a moldura do meu corpo.
E a minha boca o pretexto
para o seu mais demorado beijo (...)
porque o nosso amor
será a coisa mais bonitinha do mundo.."

Marla de Queiroz

sábado, 18 de setembro de 2010

OK, eu sei que jamais vou derramar um copo de cerveja na cabeça de um homem, nem vou sair nua pelos parques protestando contra o uso de casacos de pele. Eu nunca vou fazer uma extravagância, e é isso que me assusta, porque uma piração de vez em quando pode ser muito bem-vinda. Você me entende? Eu não tenho medo de perder o senso. Eu tenho medo é desta eterna vigilância interior, tenho medo do que me impede de falhar.

"Mas há vida"


Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

sábado, 11 de setembro de 2010


"Certo dia me perguntaram: Por que você se apaixonou? Eu respondi: - Não sei… E talvez continue não sabendo. Eu simplesmente amo, acordo e vou dormir com ele nos meus pensamentos.”

quinta-feira, 9 de setembro de 2010


Haviam apenas três alternativas: fugir, sair, e ficar. Pensei horas e horas e avaliei ainda mais as consequências. Sei que é errado, mas sei também que quanto mais a gente pensa, menos sentido as coisas fazem.
Não tenho vontade de sorrir. Tenho asco e impaciência nos olhos. Depende do dia. Disseram no jornal que ontem iria chover. Fez sol. Nem o tempo climático obedece aos aperfeiçoamentos que lhe cabem. Se locomove sozinho. Queria poder fazer o mesmo; mas algo - deve-se chamar de vida - me manda bruscamente para lados diferentes há cada segundo. Quero um engarrafamento, onde minha cabeça pare de funcionar um pouco e eu precise exijir de mim mesma atenção e concentração numa coisa que não será eterna. Quero me mover, mas quando eu bem entender.
Porém, acho que troco e sou feita de fases e me mudo mais que a lua. Minha única certeza é meu coração. Eu mudo, e ele ama sempre as mesmas coisas. Fico feliz por ser destruída, mas não destruir á quem verdadeiramente amo. Minha ordem é crescente e decrescente, sempre divido minhas escuridões e clarezas em dias. Os dois sempre se misturam. Entretanto, vivo no mesmo ciclo há anos.
Hoje é nublado, parece haver uma neblina muito forte no céu, mas beem lá no alto. Branco. Pálido. Á esquerda, via-se o azul escuro, forte. Sem nuvens, sem cores demais, sem acasos, devo estar opaca como ele.
Meu pai tem em mente que eu seja esfomeada da vida, porque comida que tem que comer, ele diz que eu não como. Proteína.
Meu alimento é minha própria fome.
- Devo dizer que com o conhecimento e a vasta experiencia do senhor, devia se abrir mais e compartilhar-las com teus companheiros mais inexperientes. O que acha?
- Não posso interromper ciclos ou fases de ninguém. Infelizmente, eles terão de passar por cada vivência para sentir e apreciar o devido valor das coisas.
- Você, falando assim, me faz ter a impressão de que nesta sala os papeis estão espiritualmente invertidos.
- Mas é claro que não. Além de meu psicólogo, você é também um grande e admirado amigo...
- Então se exponha mais á mim. Lembrei outro dia de nossas passadas em Ouro Branco. Lamento não ter chegado antes; quando precisava de mim. Imagino como deve ter sido.
- Pois bem. Jamais pensei em ser obrigado á chegar aquele ponto. Claro, eu estava sozinho - e me sentia sozinho-, mas ali, foi o momento que eu mais me senti. Ajudei o rapaz, amigo meu, pelo menos eu pensava que era um amigo, estava doente, de cama. Cuidei dele por uns dias. Pensei: "Sozinho, o coitado. Faria o mesmo por mim". Ias depois, fiquei sem dinheiro, pois ainda não havia salário no novo bico. Mas não tinha uma bulhufa no bolso pra pagar a comida e a hospedagem, e ali eu não conhecia de fato ninguém. Fiquei sem comer uns dois ou três dias. No trabalho, eu queria parar todos os relógios; pois queria ficar ali, confortável, quieto, concentrado. Mas não podia. Eu sorria, tentava esquecer, lembrava de minha família e pensava que, aquilo tudo era necessário. Eu haveria de sofrer, pra depois ser feliz. Não é sempre assim? Ou é o inverso. Mas sempre é.
- E teu amigo adoecido?
- Quando já me desintegrava por fome, - tremia, tonteado- arrombei uma vitrine e os vidros obviamente caíram, sem muito barulho. Ninguém estava perto. Mas ele, o mesmo que ajudei dias atrás, me viu e ordenou cem paus para que ficasse calado. Tive de dar, ora essa. Se não ia pra cadeia. Era o dinheiro que eu guardava para a passagem de volta, de trem, mas se fora como o vento. Porém, continuei ali.
- Lamento. Mas quero detalhes sobre teu ponto fraco.
- Difícil falar. Não gosto - ninguém gosta - de falar de suas fraquezas. Procuro ter o máximo de fé. E a vergonha que tenho hoje... Ultrapassa qualquer coisa. Entretanto, meu desejo em repor minhas ausências é maior.
- Assim, tão certo?
- Só parece. Não sou santo. Minha filha mais velha ainda tem sérios ressentimentos ao meu respeito.
Tinha se lembrado, naquele instante, de episódios reais, ainda mais reais: o centro espírita, a garota bruxa do colégio, o ódio pelo bairro da esposa, as aventuras de criança, a saudade da mãe, e o mesmo ressentimento do falecido pai. Tudo se repetia.
Lembrava-se do milho, da TV. Aquele escuro, a pessoa agachada, chorando, "por favor, me tire daqui", devia ter oito anos, devota criança. A cama, aquela cama nunca saíra dali, jamais a tiravam. Remexiam nos cômodos, mas ela sempre ficava ali. Dando lembranças. Verdadeiros estorvos. A cômoda foi vendida. Os cupins conseguiram derrubá-la. A primeira gaveta já não abria. Era a dele. Sempre ficava bravo por não poder pegar objetos seus. Aquele armário, da nossa casa, que já não é mais nossa, lembra? Derrubou todos os talheres numa noite dessas, inclusive, quebrou as vasilhas de vidro cristalino que mamãe lhe deu. Mamãe, mamãe... Querida, a mamãe. Saudade dela. Agosto é marcante. Ferrava-me. Agora já acostumei. Já foram tantos e tantos agostos...
- Mas dia desses, minha filha me escreveu: Tenho medo de ir para lugares e deixar o senhor sozinho em casa. O medo se transferiu. Porque percebo, que sua compreensão já não é a mesma. Você olha pra mim com um olhar pensativo, amadurecido, consigo e não consigo entender. Mas comove. Um pouco. Sem dramas. Só comove. Olhava pros seus olhos e via tudo o que já havia acontecido. Hoje, olho pra eles, e me comovo. Mas é bem interno, nada que transmita lágrimas a seu respeito. Vejo o cuidado que tem com a mais nova, torço para que ela não fique chata - turrona e irritante - quanto você. Ás vezes, escuto "eu ando tão down" ou mesmo "quero colo, vou fugir de casa. posso ficar aqui, com você? estou com medo, tive um pesadelo, só vou voltar depois das três..." Olha, eu sei que errei, que sou um freezer e você é uma calota polar inteira e congelante, mas me dói imaginar que o senhor já nesta idade, pode partir antes de me revelar histórias suas, segredos seus, passados. Memórias e dores e carinhos teus.
Eu realmente espero não me arrepender. Aguardo sua posição sobre isto. Um abraço.

P.S: Aproveite que, a essa época do ano, meu orgulho anda ausente, e meu freezer tirou férias.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010


Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.
Tocaram-te, nas tarde, assim como tocaste,
adolescente, a superfície parada de umas águas?
Tens ainda nas mãos a pequena raiz,
A fibra delicada que a si se construía em solidão?

Hilda Hilst

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Então se lembra repentinamente do rosto de cada um, do lugar; falhava-lhe a memória, mas lidava e entendia muito bem a troca de cenas. Uma pessoa no parque, duas num bar do centro de Copacabana. Ou seria Niterói? Não se lembrava tanto, pois, se confundia; só sabia que eram duas pessoas recém conhecidas.

Conhecidos ali mesmo, deviam ser onze da noite, Pablo com trinta e ela com quarenta e um. Ambos afogavam estorvos no copo de pinga que ali se apresentava. Pablo era da cidade. Ela, do interior. Super-rural. Sentia-se e cumprimentava os outros e observava a todos com um jeito tão superior que quem visse jamais suspeitava de onde viviam seus aposentos. Era mãe de quatro filhos e casada, marido fazendeiro, já doente, de cama; mal sabia ela que, naquela noite, começaria uma vida nova, um lucrativo e importante resultado, um filho.

O assunto acabara e o tempo também. Olhava ela ao relógio do pulso, calculando em que horas o galo cantaria. Saíram do bar abraçados, escorados um ao outro, cantando repetidamente "Sangue Latino" e imitavam o gingado totalmente inconfundível de Ney Matogrosso. Se apreciavam, tanta complacência pra uma noite só, se olhavam felizes por serem completos infelizes. Àquele ponto não mediam passos. Só se ouvia o salto de seu sapato e o coça-coça ensurdecedor e irritante da barba anos mil oitocentos e dez de Pablo.

Sentaram-se na areia úmida da praia, encostando em si pêlos, ossos, rosto, olho: beijos e abraços. Mãos. Pés. Unidos. Olhares, sorrisos e prazer. No meio de tudo, ela, tão ríspida e convencidamente vulnerável a qualquer toque se deixa levar por um simples caboclo que mal conhecia e só pensava em adultério, em erros, em culpa, em seus filhos - quatro, como podiam? - e no galo. Mas não, aquele jovem não queria nada além de uma aventura de noite e sem valor algum, imprestável ao ponto de não servir nem pra contar vantagem e trazê-lo satisfação.
- Estou passada. Chega de passar. Disse ela lúdica, porém lúcida a ponto de saber o que estava fazendo e lúdica dizendo abobrinhas que lhe compreendessem porque meu-marido-está-doente-e-morrendo-e-eu-não-quero-morrer-junto-dele-mas-não-se-há-nada-a-fazer-e-bla-bla-bla.
Então se lembra repentinamente do rosto de cada um, do lugar; falhava-lhe a memória, mas lidava e entendia muito bem a troca de cenas. Uma pessoa no parque, duas num bar do centro de Copacabana. Ou seria Niterói? Não se lembrava tanto, pois, se confundia; só sabia que eram duas pessoas recém conhecidas.

Conhecidos ali mesmo, deviam ser onze da noite, Pablo com trinta e ela com quarenta e um. Ambos afogavam estorvos no copo de pinga que ali se apresentava. Pablo era da cidade. Ela, do interior. Super-rural. Sentia-se e cumprimentava os outros e observava a todos com um jeito tão superior que quem visse jamais suspeitava de onde viviam seus aposentos. Era mãe de quatro filhos e casada, marido fazendeiro, já doente, de cama; mal sabia ela que, naquela noite, começaria uma vida nova, um lucrativo e importante resultado, um filho.

O assunto acabara e o tempo também. Olhava ela ao relógio do pulso, calculando em que horas o galo cantaria. Saíram do bar abraçados, escorados um ao outro, cantando repetidamente "Sangue Latino" e imitavam o gingado totalmente inconfundível de Ney Matogrosso. Se apreciavam, tanta complacência pra uma noite só, se olhavam felizes por serem completos infelizes. Àquele ponto não mediam passos. Só se ouvia o salto de seu sapato e o coça-coça ensurdecedor e irritante da barba anos mil oitocentos e dez de Pablo.

Sentaram-se na areia úmida da praia, encostando em si pêlos, ossos, rosto, olho: beijos e abraços. Mãos. Pés. Unidos. Olhares, sorrisos e prazer. No meio de tudo, ela, tão ríspida e convencidamente vulnerável a qualquer toque se deixa levar por um simples caboclo que mal conhecia e só pensava em adultério, em erros, em culpa, em seus filhos - quatro, como podiam? - e no galo. Mas não, aquele jovem não queria nada além de uma aventura de noite e sem valor algum, imprestável ao ponto de não servir nem pra contar vantagem e trazê-lo satisfação.
- Estou passada. Chega de passar. Disse ela lúdica, porém lúcida a ponto de saber o que estava fazendo e lúdica dizendo abobrinhas que lhe compreendessem porque meu-marido-está-doente-e-morrendo-e-eu-não-quero-morrer-junto-dele-mas-não-se-há-nada-a-fazer-e-bla-bla-bla.

O galo não cantou, minha senhora. Como conseguiu entrar em casa sem que seu marido lhe visse? Mas, viram você segurando o galo no colo e o apertando a boca. Sem arranhões? Marcas? Não pense isso. Ouvi também o copo de barro que eu tanto gosto e que estava na beirada da mesa, vi os arranhões no copo, e vi também suas marcas dos pés no chão. Porém, o que me incomodava não era tua presença, e sim a sujeira que você deixava por onde passava; sombras, manchas pretas, escuras, opacas. Sentia o hálito da culpa por longe. Mas leve este copo, senhora, eu o contemplava com estes meus olhos cinza esverdeados e esta minha penumbra marrom e branca a lembra de algo? Que bom que não. Renegue até o fim. Remédio ou nem macumba ou o "olhar de Oxum" sobre você irá mudar quaisquer que sejam seus fins.

Você o esnobou de lonjura ambígua demais. Precisava ter chegado mais perto. - Esfrega-me nesta cara a traição que me fizestes. Você nada mais é do que mais uma insaciável neste mundo. A coruja agora indagava: Mas, acredita, viu? Qualquer dia qualquer coisa muda. Leva-me com você. Só fico acordada de noite e o maior barulho que faço são meus urros. Sem coçadas. Começaremos de novo. Acredita. Eu, você, sua filha - que anda mexendo como nunca, desassossegada como a mãe.
Seu marido queria sair da cozinha, mas ela não o deixava; pedia perdão e revelava seus anseios, vergonhosos, pesados. Mas comuns.
- Não... Eu acho que eu sei. Sei que nem tudo tá no devido lugar. Mas eu procuro, procuro aqui, ali, no meio, no final, no início; mas não acho. Nunca acho nada. Eu procuro meu próprio erro, o início onde tudo começou e não acho. Sinto-me num labirinto onde me procuro sozinha. Não posso dizer pro próximo o que eu sinto. Não quero mistério. Mas necessito dele pois, não consigo nunca dizer o que sinto. Nunca me divirto sem pensar no depois. Depois disso aqui, depois que a tristeza chegar, depois vai vir a insônia, depois eu vou ficar chata, depois eu não vou querer ver você, depois eu não quero ir pra casa, depois me leve pra algum lugar. Bem perto. Bem perto, entre mim e você.

As nuvens já se passavam no vasto céu, nada mais ia consigo á não ser sua certa fé que lhe restava. Cactos na estrada. Faltava água. "Oh, meu pai, será que há de demorar muito? Nada tenho em mim há não ser o peso da falta que ele me faz e esta coruja em meus braços. Tirai-me de mim o quê mais além da filha que não vou mais parir?"

O sol escaldante deixava com sua eterna luz a dificuldade de enxergar, mas se via, por alto, subindo os morros, repleto de decisão e mágoa, a veracidade de um homem que dava chicotadas nos cavalos com quem quer se salvar do mundo todo, a pressa em salvar a mesma menina sozinha num dia ensolarado e de pássaros sem canto, diante de todos num parque; isolada num canto, a mesma mulher que traiu o amado marido doente: cego de amor, pronto para salvá-la.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

- Deus é naja -

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos a muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.
Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele- humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou essa: -"Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." Descemos o elevador rindo feito hienas.
Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -"Por favor, preciso de uma jamanta às 30h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque estará no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com Haddock Lobo, que tem aquela descidona) , você olha para esquina de cima. E lá está- maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."
Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" – ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema – Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.

sábado, 4 de setembro de 2010


Qual a graça de ser e estar a mesma coisa, ao mesmo tempo? Por que não ser feliz e estar triste, ser legal e estar chato, ser paciente e explodir?
Eu tenho. Tenho um milhão de medos presos aqui nessa linha. Se você desligar, sua vida vai seguir. A minha vai ficar contida nesse aparelho eletrônico. Eu já sou contida de tantas maneiras... Na verdade eu só queria te dizer que por mais que o tempo passe, não consigo preencher meus buracos. Eu olho em volta e não procuro nada. Só porque eu sei que não há nada. Só porque eu sei que o nada que eu quero tá longe de mim. É tudo um enorme, frio e presente nada. Um vazio do tamanho da minha quase existência. Eu quase existo, sabia? Afinal, quem existe por inteiro? Eu não. Eu sou metade amada (porque ninguém me assume por inteiro); metade interessante (porque assusto quem eu quero aproximar e frustro os que ignoram minha muralha); metade culpada (porque ninguém tem obrigação de me amar de verdade quando eu crio bloqueios tristes e vazios). Se você quiser desligar, tudo bem. Eu só tava fazendo drama. Claro que eu vou sobreviver, né? Nunca precisei de uma ligação pra me manter inteira. Mas me diz, e você, tá bem?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010


Quem pode explicar o que me acontece dentro? Eu tenho que responder ás minhas próprias perguntas. E tenho que ser serena para aplacar minha própria demência. E tenho que ser discreta para me receber em confiança. E tenho que ser lógica para entender minha própria confusão. Ser ao mesmo tempo o veneno e o antídoto.

Sonhos São

Desta vez foi diferente. Parecia ser um quarto ou uma sala, um cômodo bem pequeno. As paredes eram brancas mas uma pintura velha, um pouco não-apresentável mas que era aceita. Havia um travesseiro, um cobertor de tecido liso mas que parecia pesado; esquentava. Bastava ser assim. Acho que você apareceu em outro lugar. Mas apareceu. Não me lembro como, só lembro de te ver me puxando e socrorrendo pra algum lugar. Mas no cômodo que eu estava, o colchão era junto da parte, e do chão também. Sem porta. O azulejo era branco, limpo; mas o mais barato. Coloquei a cabeça sobre o lençol e minha cabeça adormeceu e meus olhos se fecharam. Mesmo desacordada meu inferno interno ainda não parava de fazer chamas. Pensei nela. No depois dela. Aquela pobre mocinha, teria um depois? Penso que sim. Mas um depois penoso, degradado e desagradável. Casada, talvez. Ou mãe solteira. Não estou jogando palavras fora. Penso que realmente seria assim, caso ela não entrasse nos eixos. Não é bom ver alguém se destruindo aos poucos e estar metade-feliz. Mesmo desacordada, parei de pensar nisso e tive a sensação de ter adormecido de verdade. Limpa. Graças a Deus. Agora não pensava em nada.. Uma borracha passou por cima de mim. Sentia. Quase invisível, não sentia o material. Só sentia que sonhava.
Só tive sonambulismo uma vez. Aos sete ou oito ou nove anos. Lembro exatamente como foi, minha mãe me contara. Mas é engraçado e vergonhoso, convencível o bastante para contar outrora. De repente vi uma coisa preta entre a porta do armário e a outra; um Louva-a-Deus. De cor um pouco extinta. Normalmente eles são amarronzados ou verdes, lembrando mais grilo. Ok. Tinha certeza do que era, agora que, mesmo dormindo, sentia que via limpamente um bicho de pernas longas pronto pra vir ao meu lado. Acabei ficando inquieta e imóvel; apaguei de novo. O Louva-a-Deus continuava ali, olhando pra e estando no mesmo lugar. Estranho. Deviam ter se passado duas horas o três. E a merda do bicho ali. Olhando pra mim. "Será que ele me louvava?" Parecia indiferente. Olhei do lado do armário e vi uma lagarta; preta, também. Pensei nele.Gostava de sustos quando estava com ele. Eu ficava mais lúcida do que lúdica. Fechava os olhos; me desconcentrava de tudo. Consegui. Finalmente. Mas dobro as sombrancelhas e tudo fica real de novo. Tenho esse mal. Não me concentro nas coisas. Não sei me desligar muito bem. Sempre algum fio fica ali, funcionando. Minha máquina pensativa não para nem quando eu mando. Não me obedece.
Voltei.A lagarta se movia como um caracol. Soltava um certo líquido ascoso. Dessa vez demorei mais a dormir; quando adormeci, senti vertigens, meu corpo se mechia e meus olhos rodavam. Meus braços tremiam e eu me sentia no topo de um penhasco. Acordei. Os olhos se abriram numa velocidade que eu não entendi muito bem. Arregalados. Prontos pra dar o bote numa cobra qualquer. Se sentiam fortes. A lagarta estava no chão e procurava algum beco que substituisse a porta. Mas não se iluda, lagartinha. Não há como sair desse sanatório. Só há um ar-condicionado na parede baixa e sempre sequestrava e nunca devolvia alguns fios de cabelo meu. Quis pegar ela e colocar num buraquinho entre a parede do lado esquerdo e a de trás, mas peguei o sono enquanto pensava. Acordei sentindo calafrios e quando vi, avistei no cobertor escorpiões e camarões. Grandes. Vinham até mim enquanto meu medo e terror aumentavam. Como eu saio daqui? Rodei os olhos e quando os olhei ali não estavam mais. Sumiram. Deitei afobada e me apoiei. Senti o travesseiro mais duro e apertei com a cabeça. Pois bem. Saíram todos de lá, mais agéis e mais rápidos. Espertos, se camuflaram no travesseiro. Saí. Não se tinha canto em que eles não estavam. Em minha volta. Todos. Sobindo em minhas pernas e pés. Braços e cabelos. Ombros.

Alguém batia na parede. Acordei.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Passado Presente

Ela possuia um olhar baixo, angústia, talvez; mesmo desconhecidos desde já entendiam, porque tanta magreza, tanta branco, tanta falta de cor, quase sem recheio. Que garota opaca. Antes a mãe dela que torrasse a mão em suas bochechas, assim pelo menos ficariam coradas. Dentro dela existia uma ausência imersa; alguma coisa irremediável; ás vezes irritava, ás vezes se acostumava, ás vezes ardia, imerecido, imigrado.
Certa vez voltando do trabalho, de pé, pensava; cores, certas cores. Azul, preto, cinza, rosa, verde, amarelo, branco, vermelho. Imaginava, cavalos brancos, Unicórnios, Bretões, Crioulos, Pasos, Árabes. Céu azul, ou céu avermelhado, nublado, amarelado, sol se pondo, pôr-do-sol, ali se estava. Imaginava árvores grandes, ávores de tronco largo, fortes e grossos, raízes em destaque, folhas caídas dando ao ver o outono, folhas verdes, riscadas, formando símbolos. Natal. Não deixava virar um manicomio geral. Imaginação pode tudo; mas isso ela não queria. Não queria que o real necessário se transformasse também em imaginação. Perdia o sentido frequentemente. Lembrou por leve de um relacionamento unilateral, lembrou tão de leve que se assustou com a buzina de um carro, fusca. Velho. Se assustou e retomou sua reta. A perda de alguém tão próximo e ao mesmo tão distante feria. Sua pele descuidada, as unhas desfeitas, mas limpas, higiênicas. A roupa comportada; se movia com pernas tão suaves que quem abaixasse os olhos e percebesse a voracidade dos pés, de quem tinha o dever de dar mil marchadadas numa formiga só, a julgaria como alguém altamente excêntrica ou uma louca como comum se pelos lados.

Mas não, não era assim,
E pra nós, pra mim, pra ela,
não havia de ser assim.

Voltou a si. Perdia o sentido frequentemente. Pensou em como lembranças tinham o potencial de fazê-la sentir camuflada. Não intencionado. Acontecia. Passou numa rua deserta mas suas habitações que nela estavam se percebia de certa distância e se ouvia barulho. Passara por um salão, apartamentos, lojas de luxo, uma floricultura e uma perfumaria. Num beco, no final da rua, se via tráfego. Tanta gente amontoada e suja e suada que retornou e seguiu outra via. Bandas desconhecidas, se perdeu. Agora sim, precisava se camuflar. Passou pela floricultura e imaginou-se dentro de um travesseiro de flores, rosas, margaridas, girassóis, gramídeas, margaridas. Sem flores comestíveis. Sem abelhas procurando pólen, não há nada nelas nem muito menos em mim. Espanto-lhes. - Chega. Vou sair daqui.
Chegou em casa. Primeira coisa vista, sua mãe, deitada de bruços no sofá. De lado, uma garrafa de vinho. Doce. Vazia. Com a pouca força que o dia a tomara, levou sua mãe ao dormitório e do seu lado sentou. Rodou novicentas e noventa e nove milhões de vezes, porque tudo haveria de ter que ser assim. Sua fé não era lá tão grande, mal podia se permitir em crer em algum Deus, pra ela tudo se fazia de sorte, e as pessoas só o usavam como anestésico. Entretando ela se pegava sonhando e acreditando, sim, tinha esperança. A maré poderia ter a folga de existir a possibilidade de alguma coisa, ao menos, que a desse afago em abundância.
Sua irmã deu um toque na porta e disse que 'já cheguei' com tom de desdém, não viu sua mãe, estava tudo escuro, depois disse 'que escuridão, pra quê isso?' - Nada. Não é nada, saia daqui. - Em seguida sua irmã saiu e a deixou, ela olhava para a mãe com quem pedia perdão por sentir pena, asco, dó. Mas a amava. E como amava. Queria seu auxilio. Queria seu porto. Queria que ela se assumisse como uma fonte. Mas não, não assumia... De quê adiantava? - Opa, tenho que fazer a janta.
Se trocou mais pálida ainda e colocou o avental; seu pai chegou, inquieto, porém em silêncio. Se serviu da janta já requentada e começaram discurssões, não com ela - ela não fazia a mínima diferença e por isso ninguém a olhara, ninguém surpreendia-se com atitudes dela ou que fosse a desfeita, não se permitia dar desgosto. Só cumpria obrigações. Bastava.
A luz acabou. Olhou pro pai e pensou em como alguém poderia falar tantos palavrões e devaneios no mesmo segundo, que preparação. Continou olhando sem ser olhada e pensou - se preocupe quando eu coçar a cabeça e ficar sem piscar por três ou dois ou quatro segundos, aí sim, se preocupe -. A mãe ainda dormia; ouviram a porta bater e o portão ranger. Não haviam velas. "DIACHO!" Falava o pai.
Exatas três horas depois a luz voltou. Sua irmã voltara. Seu pai já havia dormido pois estava cansado da oficina e amanhã ás-se-te-ho-ras tinha igreja. Compromisso. Estava mais cansado ainda porque, sua filha, a outra, dara trabalho no dia. Nova, tão nova, e já dando trabalho, pensava. Se descobrisse que o cansaço foi em vão e que houve enganos jogados, haveria influências a serem contadas, influências falsas, certeza. O olhar de angústia da outra irmã pensava isso. E sabia que iria cair pra ela. Sabia. Mas sabia que as aparências enganavam, e que no caso dela, nem miséria aparência ela tinha. Que desgaste. Sua irmã chegou ás vinte e quatro horas e a viu sentada no sofá, começou o discurso. Afobada. Falava baixo. Você enganou seu pai direitinho, garota. Sair quando se apaga a luz é ótimo, a arruaça lá fora é o que todo mundo faz, não é?! Mas você não, foi mais espera e mais ágil, foi logo se esfregando no primeiro rosto-velho que você viu. Sim, rosto velho. Você não o conhece. Além de velho, é estranho. Como pode se esconder nos fundos da casa de um estranho? Viver é correr riscos; mas não esses. Você não pensou, foi logo com a cabeça fraca. Que bom. Você pensa. Que bom que aproveitei. Mas te pergunto como fica o depois, e você se diz imprestável com um sorriso de orelha á orelha, minha cara, isso não é vida. Depois, e o seu depois?! Não vou lhe dizer que ele não vai vir e você vai se arrepender de tudo, não. Ele virá. Mas, parece que pra você, enganar e mentir e se ferrar é só uma parte do pacote. Você chegou ao mundo chorando. TEVE que chorar. TEVE que chorar pra provar que estava viva e era normal. Chora agora. Chora! Você merece. Mas chorar não vai te fazer bem; você só vai perder um líquido do seu corpo e se, for diabética que nem sua mãe, sua compaixão vai se escorrer. Pra lá. Rio, mar, oceno a baixo. Não dizem que produzir baixa glicose, abaixar seu ritmo, baixa também sua cabeça. Não me dirijo á compaixão ao próximo, compaixão com si mesma. Perdão. Você vai ter que fazer isso. Terá. Não sou nenhuma evangélica mistificada e transtornada e totalmente cega, sou você e caminho com você. Desprezo. Desprezo economiza ódio, despreze. Então... Mas, não me deixe para trás - eu não queria você, pensava. eu queria ele.início dele. Metade dele. Todo ele -. Mas eu sei que você vai deixar. Você precisa me deixar. Mas se leve. Não se deixa pra trás e nem se quebre, porque coisas tão sensíveis demoram á ser repostas.