quinta-feira, 9 de setembro de 2010

- Devo dizer que com o conhecimento e a vasta experiencia do senhor, devia se abrir mais e compartilhar-las com teus companheiros mais inexperientes. O que acha?
- Não posso interromper ciclos ou fases de ninguém. Infelizmente, eles terão de passar por cada vivência para sentir e apreciar o devido valor das coisas.
- Você, falando assim, me faz ter a impressão de que nesta sala os papeis estão espiritualmente invertidos.
- Mas é claro que não. Além de meu psicólogo, você é também um grande e admirado amigo...
- Então se exponha mais á mim. Lembrei outro dia de nossas passadas em Ouro Branco. Lamento não ter chegado antes; quando precisava de mim. Imagino como deve ter sido.
- Pois bem. Jamais pensei em ser obrigado á chegar aquele ponto. Claro, eu estava sozinho - e me sentia sozinho-, mas ali, foi o momento que eu mais me senti. Ajudei o rapaz, amigo meu, pelo menos eu pensava que era um amigo, estava doente, de cama. Cuidei dele por uns dias. Pensei: "Sozinho, o coitado. Faria o mesmo por mim". Ias depois, fiquei sem dinheiro, pois ainda não havia salário no novo bico. Mas não tinha uma bulhufa no bolso pra pagar a comida e a hospedagem, e ali eu não conhecia de fato ninguém. Fiquei sem comer uns dois ou três dias. No trabalho, eu queria parar todos os relógios; pois queria ficar ali, confortável, quieto, concentrado. Mas não podia. Eu sorria, tentava esquecer, lembrava de minha família e pensava que, aquilo tudo era necessário. Eu haveria de sofrer, pra depois ser feliz. Não é sempre assim? Ou é o inverso. Mas sempre é.
- E teu amigo adoecido?
- Quando já me desintegrava por fome, - tremia, tonteado- arrombei uma vitrine e os vidros obviamente caíram, sem muito barulho. Ninguém estava perto. Mas ele, o mesmo que ajudei dias atrás, me viu e ordenou cem paus para que ficasse calado. Tive de dar, ora essa. Se não ia pra cadeia. Era o dinheiro que eu guardava para a passagem de volta, de trem, mas se fora como o vento. Porém, continuei ali.
- Lamento. Mas quero detalhes sobre teu ponto fraco.
- Difícil falar. Não gosto - ninguém gosta - de falar de suas fraquezas. Procuro ter o máximo de fé. E a vergonha que tenho hoje... Ultrapassa qualquer coisa. Entretanto, meu desejo em repor minhas ausências é maior.
- Assim, tão certo?
- Só parece. Não sou santo. Minha filha mais velha ainda tem sérios ressentimentos ao meu respeito.
Tinha se lembrado, naquele instante, de episódios reais, ainda mais reais: o centro espírita, a garota bruxa do colégio, o ódio pelo bairro da esposa, as aventuras de criança, a saudade da mãe, e o mesmo ressentimento do falecido pai. Tudo se repetia.
Lembrava-se do milho, da TV. Aquele escuro, a pessoa agachada, chorando, "por favor, me tire daqui", devia ter oito anos, devota criança. A cama, aquela cama nunca saíra dali, jamais a tiravam. Remexiam nos cômodos, mas ela sempre ficava ali. Dando lembranças. Verdadeiros estorvos. A cômoda foi vendida. Os cupins conseguiram derrubá-la. A primeira gaveta já não abria. Era a dele. Sempre ficava bravo por não poder pegar objetos seus. Aquele armário, da nossa casa, que já não é mais nossa, lembra? Derrubou todos os talheres numa noite dessas, inclusive, quebrou as vasilhas de vidro cristalino que mamãe lhe deu. Mamãe, mamãe... Querida, a mamãe. Saudade dela. Agosto é marcante. Ferrava-me. Agora já acostumei. Já foram tantos e tantos agostos...
- Mas dia desses, minha filha me escreveu: Tenho medo de ir para lugares e deixar o senhor sozinho em casa. O medo se transferiu. Porque percebo, que sua compreensão já não é a mesma. Você olha pra mim com um olhar pensativo, amadurecido, consigo e não consigo entender. Mas comove. Um pouco. Sem dramas. Só comove. Olhava pros seus olhos e via tudo o que já havia acontecido. Hoje, olho pra eles, e me comovo. Mas é bem interno, nada que transmita lágrimas a seu respeito. Vejo o cuidado que tem com a mais nova, torço para que ela não fique chata - turrona e irritante - quanto você. Ás vezes, escuto "eu ando tão down" ou mesmo "quero colo, vou fugir de casa. posso ficar aqui, com você? estou com medo, tive um pesadelo, só vou voltar depois das três..." Olha, eu sei que errei, que sou um freezer e você é uma calota polar inteira e congelante, mas me dói imaginar que o senhor já nesta idade, pode partir antes de me revelar histórias suas, segredos seus, passados. Memórias e dores e carinhos teus.
Eu realmente espero não me arrepender. Aguardo sua posição sobre isto. Um abraço.

P.S: Aproveite que, a essa época do ano, meu orgulho anda ausente, e meu freezer tirou férias.